Exclusivo N-TV. Henrique Cymerman: “Tenho a certeza de que a minha fotografia está nas mãos do Daesh”

Fotografia: Filipe Amorim/Global Imagens

Estima-se que sejam entre 500 a 600 as crianças sequestradas desde 2014 pelo então autoproclamado Estado Islâmico (EI). Crianças que foram (são) treinadas para se transformarem em verdadeiras máquinas de guerra, capazes das maiores atrocidades. “Vi crianças a decapitarem outras crianças. Disseram-nos que depois de decapitar devíamos pôr as cabeças atrás dos corpos. Disseram também para deixarmos os corpos visíveis para os cães os comerem”, explica Akram, de 10 anos, a Henrique Cymerman. O correspondente da SIC no Médio Oriente deu conta desta realidade na reportagem “Crianças no Daesh – Infância Roubada”, dividida em duas partes e transmitida pelo canal de Carnaxide esta quarta e quinta-feira. Um trabalho, conta o jornalista à N-TV, que começou a ser feito há dois anos e meio…

ENTREVISTA: Ana Filipe Silveira

Uma reportagem com um total de cerca de 50 minutos sobre as vítimas mais inocentes de um dos grupos terroristas mais temidos no mundo. O que é que este seu trabalho implicou?
Foi um trabalho de dois anos e meio. O que aconteceu foi que eu dei uma conferência na ONU em Genebra [Suíça] sobre vários temas, e um deles era sobre o Curdistão. Recordei que era o maior povo do mundo sem independência. São entre 40 a 45 milhões de pessoas divididas entre quatro países [Turquia, Iraque, Síria e Irão]. Quando acabei, o embaixador curdo veio ter comigo e disse-me que o presidente curdo me seguia há bastante tempo e que me queria convidar a ir lá.

Foi a primeira vez que foi ao Curdistão?
Foi. Levaram-me à frente de combate e estive com o que hoje em dia é o chefe de estado-maior curdo, o general Sirwan Barzani, e que tinha o peso da luta contra o Daesh. Ele acabou por me levar aos campos de refugiados no Iraque, já há um ano, e aí encontrei a Lisa Miara, da Fundação Primavera da Esperança, uma mulher cujo trabalho [de ajudar crianças refugiadas] teve muito impacto em mim. No judaísmo existe uma coisa meio cabalística chamada “tikun olam”, que quer dizer “reparar o mundo” ou “ajudar o mundo a melhorar”. Quando eu perguntei à Lisa o que é que ela estava a fazer no Iraque, respondeu-me “tikun olam”. E isso chamou-me muito a atenção.

Na sua reportagem, ela diz que quer viver como as crianças que ajuda, que quer viver num campo de refugiados, mesmo tendo filhos e netos em Israel.
Exatamente. Ela acha que é necessário fazê-lo. Como uma judia que perdeu muitos seres humanos no Holocausto por ninguém ter feito nada, decidiu que queria ir para lá. Isso deixou-me espantado.

“Consegui uma licença especial do governo do Curdistão para poder filmar estas crianças sem lhes tapar a cara. Convenci-os que, se eles querem despertar a atenção internacional, precisam de mostrar estes miúdos e não esconder-lhes os rostos. Conseguimos chegar a este documentário, que é uma das coisas mais importantes que fiz até hoje.”

Foi quando esteve no norte do Iraque no ano passado, como já referiu, que o Henrique fez uma outra reportagem com escravas sexuais do Daesh?
Sim, nessa altura concentrei-me no tema terrível das escravas sexuais, mas notei que havia esta história do drama das crianças, que estava a crescer e dediquei-me a ele. Consegui uma licença especial do governo do Curdistão para poder filmar estas crianças sem lhes tapar a cara. Convenci-os que, se eles querem despertar a atenção internacional, precisam de mostrar estes miúdos e não esconder-lhes os rostos. Conseguimos chegar a este documentário, que é uma das coisas mais importantes que fiz até hoje.

Por se tratarem de crianças?
Por isso e por ser um fenómeno que é tão inexplicável para pessoas que vêm de um mundo democrático e com valores como os nossos. Olhar para aquilo e ver como se cria um Estado que está baseado em leis do século VII.

Numa entrevista dada há cerca de cinco anos à revista “Notícias TV”, disse que tinha medo de voltar a ter medo, de se deixar intimidar pelos “mais radicais”. Ora, nessa altura, ainda o Estado Islâmico não tinha autoproclamado o seu califado jihadista. Três anos depois, acredita que esta sua reportagem e o seu nome já chegou às mãos do EI?
Ah pois… Já chegou há muito tempo! Acho que eles souberam de nós ainda quando estávamos a fazer a reportagem. Eu estive lá uma semana e não vi um único jornalista. Um único!

“Tenho a certeza de que a minha fotografia está nas mãos dos radicais, tal como está no Líbano e provavelmente no Irão. Mas isso nunca foi motivo para que me calasse. (…) Decidi que não me posso dar ao luxo de ter medo.”

Por causa do medo?
Suponho que sim. Também por haver uma espécie de desinteresse geral terrível. Em qualquer caso, tenho a certeza de que a minha fotografia está nas mãos dos radicais, tal como está no Líbano e provavelmente no Irão. Mas isso nunca foi motivo para que me calasse. Decidi que não me posso dar ao luxo de ter medo. Obviamente que vou para estes locais com muito cuidado e não me entrego a qualquer pessoa.

Mas neste caso, não sentiu que o perigo era maior?
Sabe que quando começámos este trabalho e eu vi a primeira criança que tinha sido resgatada pela equipa da Lisa, foi suficiente para perder todo o medo e nos lançarmos naquela que percebi ser uma missão muito importante: iluminar com as nossas câmaras essa coisa terrível e escura que está a acontecer há três anos.

Durante a reportagem relatou o olhar dessas crianças, que chegaram a dizer-lhe que se continuassem a falar inglês teriam de o matar. Como foi sentir esse olhar na sua direção?
Muito duro. Quando olhei com mais atenção para um menino de dois anos, um bebé ainda, com a chupeta na boca, vi um adulto com uma dureza terrível nos olhos. Atrevo-me a dizer que com um aspeto quase cruel. E os mais velhos fazem comentários que provocam medo. Quando dizem “se continuares a falar inglês, vou ter de te decapitar”… Foi um miúdo de dez anos que disse isso. É um choque. Foi uma experiência extremamente violenta. Estes miúdos que passaram pelo Daesh ficaram marcados e dentro da mente deles há uma bomba latente que é preciso tratar rapidamente para tentar devolvê-los ao mundo do bem.

São crianças que parecem falar com normalidade de decapitar outros…
Falam mesmo. Eles começavam por decapitar bonecas, passavam para os gatos, depois os cães e chegavam então aos seres humanos. Eles fizeram isso durante três anos e este tempo é uma percentagem importante da vida deles.

Um dos seus objetivos é chamar a atenção da comunidade internacional para esta realidade?
[suspiro] Olhe, Ana… eu não quero dar-me a qualquer tipo de ilusões. Noto que a reportagem tem um eco diferente. Em geral, as minhas reportagens provocam sempre polémica, a favor ou contra. Neste caso, as pessoas estão a reagir de uma maneira extremamente emotiva. Eu gostaria que não esquecessem, porque nós temos todos memória curta. Isto é um problema que já dura há vários anos e praticamente ninguém mexeu um dedo. Estou em contacto com o Papa [Francisco], que desde a minha primeira viagem mostrou muito interesse em saber o que está a acontecer. Espero que, por um lado o Papa e por outro o secretário-geral da ONU, António Guterres, ajudem. Já aconteceu no passado. Às vezes, o jornalismo pode ser útil a causas humanas e eu espero que este seja o caso.

“Estou a preparar uma nova reportagem sobre o drama dos cristãos no Médio Oriente, que estão a desaparecer. É um trabalho parecido a este. É uma comunidade que está a eclipsar-se porque os cristãos ou foram mortos ou fugiram para outros países.”

E o Henrique, vai continuar a acompanhar estas crianças?
Absolutamente. Já o estou a fazer. Ainda ontem [quarta-feira] falei com a Lisa sobre a rapariga que acompanhámos na sua libertação e ela conta-me que a progressão dela é muito, muito lenta, mas que existe. Durante dois meses, ela não falou com ninguém. Lembro-me do momento em que ela chegou a casa e nos pediu para trocar de roupa no caminho, quando a meteram no jipe e ela já estava numa zona que sabia ser segura. Pediu para vestir uma camisa de cor, porque nos últimos dois anos e meio o Daesh a obrigou a vestir-se de preto. Foi a única atividade que ela fez: vestir-se de amarelo.

É uma resposta ao Estado Islâmico?
Sem dúvida. Mas isto para dizer que vou seguir esta menina e vou seguir o Akram. Talvez não como jornalista, mas como ser humano. E sempre que puder vou contar a história deles.