João Ricardo/Óbito. “A vida foi sempre generosa para comigo”

João Ricardo partiu, mas agradeceu a generosidade da vida. Famoso pelos papéis cómicos, gostava de ser vilão e vivia para a sua grande paixão: o filho.

Depois de ter vencido uma primeira batalha contra o cancro, em 2016, o ator não resistiu ao reaparecimento do tumor. A novela “Espelho d’Água”, da SIC, foi o seu último projeto e Mário foi a última de dezenas de personagens marcantes.

Aos seis anos, o pai levou-o a ver o filme “O Destino Marca a Hora” e foi aí que decidiu ser ator. Filho de pais separados, teve uma relação distante com a mãe. Foi criado com a avó, não gostava da escola e aos 12 anos começou a trabalhar. De dia era ajudante de motorista e à noite estudava. Só depois apareceu o teatro, o de Carnide, e um grupo amador com quem começou a representar.

Uma zanga com o pai levou-o a sair de casa e a ter de viver na rua. Trabalhou nas obras e, em entrevista a Daniel Oliveira, no “Alta Definição”, da SIC, revelou que chegou a ter de roubar para comer. Poucos sabiam desta fase negra da vida do ator.

João Ricardo entrou pela primeira vez na casa dos portugueses em 1989, através da RTP1 e da série “Caixa Alta”, na qual fez uma participação especial.

“Eu adorava fazer um vilão. Quando digo um vilão, falo de um papel de mau que fizesse as pessoas odiarem-me”

Desde então, foram muitas as novelas na sua carreira. Na RTP1, na TVI, mas sobretudo na SIC, com quem assinou contrato de exclusividade em 2010. Na estação de Carnaxide interpretou algumas das personagens mais marcantes dos últimos tempos em ficção, como foi o caso de Armando Coutinho, em “Laços de Sangue”. Um novo-rico e proprietário de um aterro sanitário, conhecido por “grunhir” e falar alto, que o próprio João Ricardo não queria interpretar, conforme disse em entrevista à revista “Notícias TV”, em 2011.

“Não queria este papel. Escrevi 12 folhas a explicar porque é que não queria fazer esta personagem. Mas agora estaria completamente arrependido”, revelou, manifestando ainda o desejo de sair do registo cómico ao qual era associado: “Eu adorava fazer um vilão. Quando digo um vilão falo de um papel de mau que fizesse as pessoas odiarem-me, um toxicodependente, um assassino…”

Na mesma entrevista, e apesar de todo o reconhecimento, João Ricardo assumiu não ser um ator perfeito, sobretudo em televisão: “Eu continuo a achar que não sou bom ator de televisão.”

A SIC e a produtora SP Televisão não partilhavam da mesma opinião e daí para cá seguiram-se “Dancin’ Days”, “Sol de Inverno”, “Mal Salgado”, “Coração D’Ouro”, “Rainha das Flores” e “Espelho D’Água”, quase sempre integrado no núcleo cómico. Fora da ficção de Carnaxide, mergulhou para a piscina em “Splash!”, superou os desafios de “Vale Tudo” e apresentou o programa de apanhados “Não Há Crise”, ao lado de Rita Andrade.

“Dizem que todos os homens têm que escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Uma semente já deixei, é o meu filho”

Pelo meio encenou algumas peças de teatro e escreveu o livro infantil “Queres Namorar Comigo?”, dedicado ao filho, Rodrigo, de 12 anos. O papel de pai foi, de facto, o mais importante da sua vida e aquele de que mais se orgulha. Por cumprir, ficou o desafio de atravessar o Estreito de Gibraltar a nado, uma homenagem que queria fazer ao seu grande amor.

“É um testemunho de vida, uma coisa que deixo para o meu filho recordar (…) dizem que todos os homens têm que escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Uma semente já deixei, é o meu filho, o livro já tenho e vai ser publicado no Dia do Pai, a árvore penso que significa algo maior, e por isso escolhi este desafio”, afirmou à “Notícias TV”, também em 2011.

“Acredito que existe alguém que toma conta de mim. a minha avó Joana sei que está ali”

Um desmaio levou-o ao hospital em 2016, tendo sido diagnosticado com um tumor cerebral. Foi operado, correu risco de vida e contra todos os prognósticos conseguiu recuperar e voltar ao trabalho. “A vida foi sempre generosa para comigo, sempre me tirou o que tinha a tirar na altura certa e sempre me deu tudo o que eu queria na altura certa. Eu não tive nada e já tive tudo. Hoje tenho tudo. Eu sei que a vida nunca me vai ser retirada, é impossível. Façamos apostas e eu ganho”, frisava, em entrevista ao “Alta Definição”, em outubro de 2016.

Em julho deste ano, a vida acabaria por lhe pregar nova rasteira e a afastá-lo do pequeno ecrã, da profissão e da missão de entreter as pessoas. Recebia os cuidados paliativos em casa e estava aos cuidados de uma enfermeira mas viria a morrer no Hospital de Santa Maria. Tinha 53 anos. Não acreditava em Deus mas sim em Jesus e na existência de alguém que olhava por ele: “Acredito que existe alguém que toma conta de mim. A minha avó Joana sei que está ali”.

TEXTO: João Farinha

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