Ricardo Araújo Pereira: “Os limites que interessam neste episódio do Will Smith são os da lei”

Ricardo Araújo Pereira
Fotografia: Instagram Ricardo Araújo Pereira

Ricardo Araújo Pereira defende que não são os limites do humor que estão em causa no episódio em que Chris Rock foi agredido por Will Smith, mas sim os limites da reação ao humor. O humorista lamenta que as pessoas presentes no evento não tenham “mandado o agressor sair da sala”.

Já deve ter visto a agressão do Will Smith ao Chris Rock, que surge na sequência de uma piada sobre o aspeto físico de Jada Pinkett Smith. Há limites para humor?

Deixe-me recapitular o que aconteceu: Chris Rock fez uma piada. Will Smith respondeu praticando o crime que vem descrito no artigo 143º do código penal, que se chama “ofensa à integridade física simples”. E a sua pergunta é se há limites para o que o agredido fez. Parece-me que isso é capaz de ser parte do problema. Uma vez que, naquele evento, ninguém se lembrou de fazer o que a decência mínima aconselhava (mandar o agressor sair da sala, uma vez que o seu comportamento é inaceitável), não devíamos estar a discutir os limites da reação a uma piada? Até porque menos de uma hora depois o agressor estava a receber um prémio e a ser aplaudido.

Se não há limites, depende da forma como se brinca?

Ficaria muito surpreendido se ontem tivéssemos descoberto que os limites do humor são o cabelo de uma atriz de Hollywood. Mais uma vez: os limites que interessam neste episódio são os da lei. Um dos intervenientes violou-os, o outro não. No entanto, as suas perguntas são sobre este último. Creio que isso se deve ao atual ambiente, que considera a comédia uma agressão, à qual é legítimo, ou pelo menos compreensível, responder com violência física. Como calcula, não estou de acordo. Pensei, aliás, que o que aconteceu ontem tinha deixado muito claro que uma piada é uma coisa e uma agressão é outra.

Quando se fala em saúde, os humoristas devem ter um cuidado extra?

Saúde? Não estamos exatamente a falar de cancro do pâncreas, pois não? A piada é sobre o facto de Jada Smith ser fisicamente parecida com a personagem de ficção “GI Jane”. Recordo que a “GI Jane” é uma heroína que ultrapassa barreiras de género e acaba a salvar um companheiro num cenário de guerra. Parece-lhe uma comparação ofensiva? Há uns anos, a Laurinda Alves escreveu um texto em que agradecia ao Ronaldo Fenómeno por usar o cabelo rapado. Era útil na ala pediátrica de oncologia, porque os médicos podiam dizer aos miúdos que ficavam sem cabelo por causa dos tratamentos que estavam parecidos com o Ronaldo. Ser comparado com heróis não costuma ser problemático.

Will Smith começou por rir mas depois a reação mudou. Compreende o impulso?

Creio que as únicas pessoas que “compreenderam o impulso” foram as que, naquele evento, permitiram que um agressor se mantivesse tranquilamente no seu lugar e, menos de uma hora depois de ter praticado a agressão, estivesse a receber um prémio e a respetiva ovação, pedindo desculpa a toda a gente menos à pessoa que tinha agredido, e transformando o discurso de agradecimento numa ode ao nobre propósito de “proteger da família”.