Simone de Oliveira: “Resisto porque adoro viver, nem quero pensar que tenho de ir para o outro lado”

Simone de Oliveira
Fotografia: TIAGO PETINGA/LUSA

Simone de Oliveira, 84 anos, 65 de carreira, dá o espetáculo de despedida no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, amanhã. Entrevista à artista que tenta “não chorar”.

Sentada no sofá do apartamento situado entre o Príncipe Real e São Bento, em Lisboa, Simone de Oliveira puxa de um cigarro antes de começar a conversa. Na sala há fotos antigas e condecorações, mas a artista prefere eleger um quadro, dado por uma fã, com alguns dos melhores momentos. Esta terça-feira despede-se dos palcos no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com o espetáculo “Sim, Sou eu… Simone”.

É verdade que a casa cheia para o concerto foi das poucas coisas que a deixou de boca aberta?

Tive uma reação de espanto. Não vou dizer que não pensei que pudesse esgotar, não vaidosamente, agora numa manhã… nunca me passou pela cabeça. Foi assim que abriu a bilheteira. E não sei explicar porquê.

O público tem carinho pela Simone.

Terei cantado coisas que as pessoas gostam, grandes poetas, tive a sorte que houve canções que ficaram no ouvido das pessoas, “A Desfolhada” é incontornável, “Sol de Inverno”, “Sete Letras”, imensas, cantei 430 canções na vida.

E como é que vai ser o espetáculo?

Sei que vai haver uma orquestra com 17 figuras e juro que não sei mesmo mais nada. É tudo um “happening” e só vou saber mesmo no dia do ensaio geral. Devem ter feito uma coisa muito bonita: a Fátima Bernardo, o Nuno Feist, a Adelaide Figueiredo. A única coisa que eu quero é cantar bem, estar bem-disposta e não chorar. Isto é fundamental.

Porquê?

Porque às vezes é complicado para mim. Lembro-me que não há muito tempo entrei no Coliseu do Porto e as pessoas gritaram “Simone” e a única coisa que pensei foi “não se chora, não se chora”…

Orgulha-se de ter sido sempre uma mulher livre…

Fui sempre livre, sou livre, nunca abdiquei, mesmo nas alturas difíceis, como no Estado Novo. Acho é que o lápis azul estava esquecido quando cantei “A Desfolhada”, em 1969. Como a “Tourada”, do Tordo. Estava tudo: “o que é que isso quererá dizer?”. Ou então talvez já era a primavera Marcelista e não quiseram causar tanta perturbação.

Nunca lhe censuraram nada?

Só me foi cortada uma canção há muitos anos, uma coisa que um brasileiro cantava ali no São Luiz, “O Amendoim Torradinho”. Eu era muito sensual a cantar aquilo e aquela hora da noite não dava mesmo para as famílias.

Foi preciso coragem para cantar “A Desfolhada”?

Coragem é preciso ter para outras coisas. Olhe, quando estive doente e fiz radioterapia, muita, estava a fazer uma novela e ninguém soube. Não sei se “A Desfolhada” foi inconsciência, loucura… sou assim, sou isto e não quero ser outra coisa até ao fim dos meus dias. E acabou!

Interpretou canções que não queria?

Nunca! Nada de imposições ou fretes. Comigo? Por amor de Deus. Só cantei uma vez “O Gatinho” e depois arrependi-me logo. Também nunca me deram nada que eu dissesse que não gostava. Cantei marchas, fiz um disco de fado com a ajuda do Carlos do Carmo que o Tordo disse que era de eleição.

Teve um contributo decisivo na emancipação feminina. Ganhou ou perdeu mais por isso?

Ganhei mais. Um certo respeito. Com a minha abertura de espírito as mulheres talvez tenham percebido que era possível fazer coisas que julgavam que não eram capazes. Violência doméstica? Vamos embora dali. Claro que é difícil, porque normalmente estas pessoas têm situações financeiras complicadas ou filhos e pensam, “para onde vou?”, “faço o quê?”. No meu caso tive a casa dos meus pais. Podiam não me ter aceitado e acolheram-me. Aceitaram esta filha completamente diferente do que era.

Ruy de Carvalho fez 95 este mês e disse que resiste porque não pensa na morte. Concorda?

Não só. É fundamental gostar de viver. Adoro viver. Nem quero pensar que tenho de ir para o outro lado, porque este eu sei como é que é. Deixem-me cá estar, desde que não me liguem às máquinas. Lagarto, lagarto, lagarto! Peço que a minha cabeça se mantenha como está agora, lúcida, memória ótima, embora se me perguntar o que almocei há três semanas… não sei!

Viveu vários conflitos mundiais. Esperava assistir a mais uma guerra?

Não compreendo esta guerra. Cantei na guerra de África para os nossos soldados, foi violento, e nunca me passou pela cabeça que aos 84 anos estivesse a ver isto. No primeiro dia da invasão estive acordada até às quatro da manhã. Acho mesmo que o botox que aquele senhor (Vladimir Putin) já pôs na cara já lhe foi aos neurónios! O que é aquilo? Quer ser dono de tudo? Já tem tantos palácios onde não vai porque vive num subterrâneo há dois anos… deve ter um medo!

Ainda se recorda da chegada apoteótica a Santa Apolónia após a participação no Festival da Eurovisão?

Foi uma coisa de povo, “ela está a dizer que quem faz um filho, fá-lo por gosto”. Digo eu, que até hoje nunca consegui perceber muito bem, que só a vi há seis ou sete anos porque a RTP fez o favor de me passar aqueles sete minutos e só aí tive a noção. Na altura só perguntava: “Por que é que o comboio não anda?” As pessoas estavam na linha. Em Santarém andámos mais devagar e houve um homem que me agarrou e disse: “ai, mulher, o que fizeram ao nosso povo”. Fiquei muito espantada a olhar para ele.

Chegou a cantar por dinheiro?

Dei alma e coração a tudo o que fiz. Fiz por paixão, por verdade, nunca por dinheiro. Teria sido muito fácil e hoje era uma mulher rica. Era muito bonita, agora sou uma velha simpática, ninguém é novo aos 84 anos. Vamos lá pôr as coisas no seu devido sítio. Não era a minha praia. Amei quem tive de amar, tive paixões, os filhos quando quis ter, de quem os quis ter. Fi-los por gosto. Tenho o maior orgulho neles, têm a espinha direita.

Trabalhou, também na representação, com os melhores. Que memórias guarda desses tempos?

Fiz muita revista no Parque Mayer, em Lisboa, e só não trabalhei com o António Silva e o Vasco Santana, de resto trabalhei com todas as pessoas que já desapareceram: Hortense Luz, Ribeirinho (fiz de mulher dele, tratava-o por mestre), Mariana Rey Monteiro. Dela guardo uma frase muito bonita: passou por mim, pôs-me a mão na cabeça e disse: “a menina tem os tempos de representação da minha mãe”. Chorei tanto, tanto. Para mim é tão importante como uma condecoração ou uma grande salva de palmas. E há outra frase do Nicolau Breyner: “Tu não sabes a atriz que és”. Por que é que eles me disseram isto? Não faço a menor ideia!

Chegaram a fazer uma peça que teve um tempo recorde… negativo.

Sei que fiz uma revista com o Nicolau, esteve 15 dias em cena no Parque Mayer. Era tão má, tão má! “Ai isto é tão mau”, dizia ele. Um dia estava mais gente em palco do que na plateia…. depois de 15 dias acabou!

Quem é que a dirigiu melhor?

Como atriz tenho mesmo de ser dirigida, senão faço uma “Simonada”. Fui muito bem dirigida pelo Armando Cortez em “A Tragédia da Rua das Flores” e também muito bem pelo Nicolau em “Gente Fina É Outra Coisa”.

Cantou por todo o mundo. Houve algum sítio no qual não tenha conseguido?

Cantei em todo lado. Em casas de prostitutas, para os gays, é para cantar, tratam-me bem, vou lá. E pagam-me, claro. Borlas fiz todas: hospitais, válidos, inválidos, nunca neguei cantar para alguém que precisasse. Mas nunca fui capaz de ir a prisões de mulheres. É uma cobardia minha, não sei explicar.

Gosta de se ouvir?

Nunca me oiço, não ponho discos a tocar. Cantei… está feito. Por que é que me vou enervar e perceber se respirei mal? Não vale a pena!

O que faz para descontrair aos 85 anos?

Gosto muito de fazer renda. Estou agora a fazer. Nos últimos dias não tenho feito por causa do espetáculo, então fico aqui quietinha. A renda obriga-me a concentrar-me naqueles quadradinhos e, às vezes, também cansa, não me aparece contá-los. Vejo a FOX Crime, o canal da Ópera e oiço a Smooth FM, uma música suave.

Quais são os seus prazeres da vida?

Fumo para aí dez cigarros por dia. No hospital, quando tive os problemas oncológicos, estava à espera que viessem ter comigo e entra uma enfermeira que cheirava a tabaco. Tinha dois maços SG Gigante e eu sem fumar. Ela deu-me um cigarrinho. Depois, gosto de ler um bom livro. Tenho uma fixação pelo Lobo Antunes e pela poesia da Alice Vieira. Gostava de ler as coisas da Rosa Lobato de Faria e gosto do David Mourão-Ferreira. O meu livro de cabeceira é a “Antologia Poética”, do Miguel Torga, e tenho um autógrafo dele.

Há pouco falávamos na emancipação feminina. Já chegou ao ponto em que imaginava?

Melhorou muito, mas ainda há muita coisa para fazer. Uma mulher hoje tem uma independência social, política ou económica que não havia na década de 60. Na altura era-se professora, médica, jamais na vida, arquiteta, nem pensar. Somos uma sociedade matriarcal, as avós, as tias…

Recentemente, mostrou-se emocionada com músicas do FF ou Luís Trigacheiro. A música está bem entregue às novas gerações?

Gosto muito destas gerações há gente a cantar muito bem. Mas onde estão os locais de trabalho, por que é que a rádio só raramente toca música portuguesa, a não ser a Rádio Amália, que eu saiba. Vejo sempre o “The Voice”.

Este país não lhe deve nada?

Nada, que ideia! Eu é que devo um infinito obrigado. Este país sempre me tratou muito bem, não tenho rigorosamente nada a dizer de ninguém, nenhum fotógrafo, maquilhadora, homem que puxa as cordas, senhor ou senhora que me foi buscar um café e levou ao camarim ou comprar tabaco – toda a gente sabe que eu fumo, não é?