“Sou médico e sou homossexual”. A carta de um neurologista sobre as declarações de Gentil Martins

“Sou médico e sou homossexual”. Começa assim a carta que Bruno Maia, neurologista do Centro Hospitalar de Lisboa Central, escreveu na rede social Facebook a propósito das declarações de António Gentil Martins, um dos mais conceituados cirurgiões portugueses, sobre Cristiano Ronaldo.

Bruno Maia, de 35 anos, insurgiu-se contra a entrevista que o colega de profissão deu ao jornal “Expresso”, na qual afirma que Cristiano Ronaldo é “um estupor moral, que não pode ser exemplo para ninguém”, pelo facto de privar os filhos da companhia das mães biológicas, e que a homossexualidade é “uma anomalia, um desvio de personalidade. Como os sadomasoquistas ou as pessoas que se mutilam”.

“Sempre quis ser médico e sempre me senti homossexual”, diz Maia, relatando que cresceu “com um pai e uma mãe” que lhe ensinaram “o que era o amor e o que significa ter uma família”, que sempre foi “um exemplo de sucesso escolar” e que quando decidiu contar sobre a sua orientação sexual foi “apoiado e protegido”.

“Já tive amores e desamores. Paixões intensas, outras fugazes. Já namorei e fui feliz, já fui abandonado e também já abandonei. Já partilhei casa e o resto da vida com um grande amor e já conheci o gosto amargo da separação. Nunca sofri de doença mental. Nunca fui diagnosticado com nenhum desvio da personalidade. Nunca tive nenhuma dificuldade de adaptação a ambientes diferentes. Nunca precisei de terapia ou acompanhamento psicológico. A minha homossexualidade nunca foi um fator de sofrimento para mim”, escreve.

Acrescenta que, como praticante de desporto federado, nunca sentiu “nenhum tipo de exclusão” nem “nunca a partilha da nudez foi um problema” quando está com os colegas de equipa nos balneários ou nos quartos onde pernoitam quando jogam “fora em competição”.

“Queira alguém explicar-me a ‘anomalia’ na minha vida? Alguém me aponta critérios de diagnóstico para desvio da personalidade? Devo fazer ‘terapia de reconversão’? Para mudar o quê exatamente? Se para a medicina, a anomalia implica sofrimento (caso contrário é apenas uma variante), onde está o meu sofrimento?”

Bruno Maia prossegue, frisando que a “anomalia reside no facto de toda” a sua história “ser pouco frequente”. “Para a maior parte dos homossexuais ou pessoas transgénero, não existe uma história de ‘felicidade’ e ‘integração’.

“Existe sofrimento – mas esse sofrimento não vem de dentro, vem de fora. Vem dos outros. De famílias destruídas pela homofobia e pela transfobia. De exclusão e ‘bullying’ na escola. De dificuldades acrescidas no emprego. De isolamento social. E também dos médicos. Que fingem não serem influenciados pela orientação sexual ou identidade de género mas denunciam-se constantemente nos comentários, nos olhares, nas atitudes”

Revela que na classe profissional à qual pertence há quem se recuse “falar com o seu utente sobre a sua vida familiar, mesmo sabendo que ela faz parte da história que têm de colher”. “Quando fingem aceitar os seus colegas homossexuais mas na verdade o que esperam é que eles estejam ‘caladinhos’ e não falem sobre a sua vida privada (afinal aquilo é trabalho…) mas passam os dias a falar sobre os seus casamentos, os seus filhos ou a fazerem comentários obscenos sobre as médicas ou enfermeiras mais jovens. Quando assumem dentro de um bloco operatório ou de uma sala de aulas da faculdade que todos os presentes são, obviamente, ‘normais’ e deixam escapar o comentário sexista e homofóbico. Quando assumem à partida perante um doente homem que ele tem uma namorada ou esposa e que uma mulher terá, com certeza, marido”.

“A história já nos demonstrou que, por vezes, a anomalia não está no indivíduo mas sim na sociedade – lembram-se do holocausto? Do genocídio no Ruanda? Da PIDE Portuguesa? Da escravatura?”

A carta termina com um alerta: “Mais grave do que esquecer a história é fechar os olhos ao presente. E fazer de conta que esta onda de revanchismo contra os direitos dos seres humanos e o suposto ‘politicamente correto’ que se apoia na tão auto elogiada liberdade de expressão, foram o rastilho de pólvora que se acendeu nos Estados Unidos e que culminou na eleição de um presidente chamado Donald Trump”.

TEXTO: Ana Filipe Silveira