“Sexo e a Cidade” estreou-se há 20 anos. Elas quebraram tabus e continuam a valer milhões

Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte. Quem não as conhece? As estrelas de “Sexo e a Cidade” mudaram mentalidades, deram confiança às mulheres e desmistificaram o sexo, além de integrarem um negócio de moda e publicidade de milhões de euros. Vinte anos depois, o legado continua vivo.

Existe um mundo antes e depois de Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte. A ideia pode parecer extremista, mas, em muitos aspetos, as quatro protagonistas de “Sexo e A Cidade” revolucionaram a indústria televisiva, a mentalidade de milhões de pessoas e desbravaram caminhos nunca antes trilhados. No dia em que um dos maiores fenómenos do pequeno ecrã celebra 20 anos desde a sua estreia, em 1998, a N-TV avalia o impacto socioeconómico e cultural que tiveram as personagens de Sarah Jessica Parker, Kim Cattrall, Cynthia Nixon e Kristin Davis.

Marta Crawford não tem dúvidas. O papel mais importante da série inspirada nos livros de Candace Bushnell e criada por Darren Star foi o da desmistificação do sexo e do comportamento sexual da mulher. “Foi extremamente importante. Estamos a falar de uma série vista no mundo inteiro, que mostrou uma nova realidade e uma nova vivência das relações, de uma forma distinta daquela que era a mais tradicional, da mulher pacata, passiva, com pouca iniciativa, muito pudica. Estas quatro mulheres têm uma visão da sexualidade muito mais ativa e existe uma nova mulher que aparece nesta altura e que deixa de ter aquelas características mais tradicionais”, explica a sexóloga.

E acrescenta: “Começou a falar-se de sexualidade de uma forma muito mais livre, aberta, direta, em que a mulher tem o papel que antes só era atribuído ao homem, mais ativo na procura da sexualidade. A série foi um marco histórico. Mesmo o facto de elas falarem de comportamentos sexuais no café, logo ao pequeno-almoço (risos) quebra a ideia de olhar para o sexo como tabu”, explica Marta Crawford à N-TV.

O facto de as quatro personagens de “Sexo e a Cidade” serem mulheres confiantes e independentes financeiramente também foi fulcral para a mudança de mentalidades.

”Todas elas têm carreiras profissionais de sucesso, não vivem à custa de ninguém, umas têm parceiro, outras não. Traduziu muito bem a ideia que se começava a viver em Nova Iorque na altura e outros países, em que as relações já não eram só aquelas tradicionais do ‘casar-se e ter filhos’. Estas mulheres quebraram esse protocolo. Elas também querem uma relação amorosa onde se sintam felizes e realizadas, toda a gente quer, mas tinham disponibilidade e capacidade de ir à luta e seguir em frente quando as coisas não corriam bem. A série foi uma abertura para uma nova forma de estar, mesmo até pelo tema da homossexualidade que também estava presente, com os amigos delas”, acrescenta a sexóloga.

Ana Garcia Martins, a autora do blogue A Pipoca Mais Doce e que já foi apelidada por muitos de Carrie Bradshaw portuguesa, explica que o sucesso gigante da série se deve à sua intemporalidade.

“Eu continuo a rever os episódios com frequência, mesmo os da primeira temporada. Vejo e revejo. E é engraçado porque os temas que elas debatiam continuam a ser os mesmíssimos que as mulheres questionam hoje. A série teve, sem dúvida, um grande condão de colocar as mulheres a falarem publicamente de temas que se calhar antes só falavam no seu íntimo, de forma muito velada, muito discreta. E encerrou uma data de tabus em relação a sexo e a várias outras questões, veio derrubar muitas barreiras. Para as mulheres foi um marco importantíssimo. Qualquer mulher, independentemente do estrato social, da idade ou do que quer que seja, já passou por aquelas situações. Há uma empatia muito grande com as quatro protagonistas e pelo que elas dizem”, frisa a jornalista.

Quanto às comparações com a personagem de Sarah Jessica Parker, adianta: “É uma comparação simpática, mas temos que pôr as coisas no devido plano: o ambiente super glamoroso da Carrie em Nova Iorque e o meu em Lisboa. Percebo porque é que as pessoas fazem o paralelismo, porque escrevemos as duas, ela tinha uma crónica e eu também tive várias em jornais, depois toda a envolvência dos sapatos. Somos duas pessoas ligadas à escrita e aos sapatos, mas a comparação fica-se por ai”, ri-se Ana Garcia Martins, que criou A Pipoca mais Doce em 2004, ano em que terminou a série norte-americana. Mas a data foi “mera coincidência”. “Criei o blogue porque queria ter ali uma plataforma onde pudesse escrever tudo o que me vinha à cabeça. Foi mais por aí, a influência de ‘Sexo e a Cidade’ ainda não estava lá”, explica.

“A SÉRIE FOI UM MARCO HISTÓRICO. COMEÇOU A FALAR-SE DE SEXO DE FORMA MAIS LIVRE, DIRETA”, DIZ MARTA CRAWFORD

Mas, afinal, porque levou tanto tempo até existir uma série com quatro mulheres protagonistas e onde o sexo é tratado por ‘tu’? “Foi só em 1998 porque estas coisas acontecem quando têm de acontecer. Se calhar já havia essa intenção, se calhar quem faz os argumentos percebeu que ainda não tinha sido a altura certa, não sei. Mas os norte-americanos também são muito conservadores. Provavelmente, fora de Nova Iorque, o resto do país achava-as levianas. Até simpatizarem com elas, com a história e se começarem a identificar com elas. Dentro de cada conservador existe sempre um lado menos contido”, ri-se a sexóloga Marta Crawford, que aponta ainda outro fator que ajudou ao sucesso da série transmitida em mais de 200 países pelo mundo e vencedora de oito estatuetas dos Globos de Ouro e sete galardões Emmy.

“O interessante nestas quatro mulheres é serem uma combinação fantástica, são muito complementares. A maioria das mulheres e até dos homens acabam por ser uma junção das quatro. Há dias em que somos românticos, outros mais animais, ou pragmáticos, ou inocentes. Tudo isto faz parte da realidade humana e elas complementam isso muito bem”, diz.

Ana Garcia Martins concorda que as quatro “são a combinação perfeita”, mas confessa que se identifica especialmente “com o sarcasmo e a ironia da Miranda”. “Acho que é a personagem mais parecida comigo”, diz.

Com um ambiente marcadamente feminino, será que os homens também veem a série? “Eu acho que eles também viam, mesmo aqueles que não o admitam (risos). Era uma série muito interessante, com bons temas, e isso interessa a todos”, explica o empresário de calçado Luís Onofre.

A autora de A Pipoca Mais Doce concorda. “Ai claro, os homens também veem. O meu marido vê e não tem qualquer pudor em admiti-lo (risos). Eles conseguiram perceber que através da série entravam num mundo secreto das mulheres, que já não era preciso terem um livro de instruções. Conseguiram perceber melhor uma data de assuntos em relação a nós. De certeza que qualquer homem, mesmo que não o admita, já foi dar uma espreitadela”, acrescenta.

UM NEGÓCIO DE MILHÕES

Uma autêntica máquina de fazer dinheiro. O negócio de publicidade a marcas de roupa e sapatos, assim como o sucesso de vendas da linha oficial de produtos da série faz de “Sexo e a Cidade” um petisco para investidores, empresários e criadores.

Que o diga Manolo Blahnik, o estilista espanhol que passou a ser um nome da primeira linha da moda depois de Carrie Bradshaw o ter adotado como a marca de sapatos preferida, com constantes referências na série, registando um aumento significativo de vendas. “Foi maravilhoso, sinto-me muito grato. Antes, era uma marca de luxo e com a série fiquei exposto a um novo público, mais jovem e meia-idade. A presença dos sapatos na série salvou a minha empresa”, explicou o criador à CNN.

O sucesso foi tal que o próprio criador chegou a sentir-se “cansado” e “enjoado” com a constante associação à série, já nas últimas temporadas. ”Até os taxistas já me conhecem. Este tipo de exposição foi algo que nunca quis”, desabafou o espanhol.

“A SÉRIE É O EX-LÍBRIS DA MODA. […] UMA JANELA DE VISIBILIDADE PARA O MUNDO. GOSTARIA DE TER CALÇADO A CARRIE”, DIZ LUÍS ONOFRE

Também a bebida alcoólica Cosmopolitan, apesar de ter sido inventada nos anos 1970, só foi conhecida do grande público quando as quatro amigas de “Sexo e a Cidade” a tornaram no seu cocktail preferido.

“Em termos de moda, esta série era um ex-líbris de roupa, sapatos, inclusivamente de marcas conceituadas que ficaram ainda mais conceituadas depois de aparecerem no programa. Tornaram-se em ícones”, começa por explicar Luís Onofre, designer de sapatos.

No entanto, o criador português lança uma crítica: “A moda na série, por vezes, chegava a ser um negócio um bocadinho forçado. Faz lembrar os filmes do James Bond, aquilo é um autêntico desfile de marketing. Mas na maioria dos casos, quando as séries e filmes são bons e se associam a marcas prime, isso é de louvar”, acrescenta.

E gostaria Luís Onofre de ter calçado as mulheres de “Sexo e a Cidade”? “Na altura, teria gostado muito. As coisas mudaram. Hoje em dia, se a série voltasse, não sei se teria o mesmo impacto que teve na altura, aquilo foi uma verdadeira loucura. Mas gostava, até porque seria uma janela de visibilidade para o mundo”, diz. E qual das quatro mais gostaria de calçar? “A Carrie. Teria que ser um bom salto alto e ser um sapato especial”, acrescenta o estilista.

Ana Garcia Martins considera que “a era do verdadeiro product placement começou com esta série”. “Acabou por ser uma montra para muitos designers e criadores que até ali eram desconhecidos. Ninguém ouviu falar do Manolo Blahnik até a Carrie começar a usar os sapatos dele. Tornou-se de repente um ícone muito por conta dela. Em cada série, havia um cuidado tão forte com o guarda-roupa como havia com o argumento. Era quase metade, metade e a moda é, também, o encanto da série. Não só falar dos temas que queremos ouvir mas também aquele lado inspiracional, delas viverem em Nova Iorque e terem acesso a marcas que a maioria das pessoas não tem, de terem visuais absolutamente maravilhosos, que quase todas as mulheres invejam. É um casamento muito feliz”, explica a jornalista.

Depois de terem vendidos milhões de cópias com as seis temporadas lançadas em DVD, os dois filmes adaptados para cinema foram um sucesso comercial. O primeiro, em 2008, obteve um total de receitas em todo o mundo de 320 milhões de euros, tornando-o na comédia romântica mais bem-sucedida daquele ano. Dois anos depois, em 2010, a segunda longa-metragem não foi tão lucrativa como a primeira. Ainda assim, rendeu 220 milhões de euros à escala global, tornando-se, também, no filme mais bem-sucedido do ano dentro daquele género.

A linha de produtos oficial da série também tem dado os seus frutos. Numa coleção onde existe praticamente de tudo (peças de roupa (desde camisolas a, imagine-se!, cuecas), puzzles, canecas, relógios, perfumes, produtos de cosmética, toalhas, só para mencionar alguns, Sarah Jessica Parker, Kim Cattrall, Cynthia Nixon e Kristin Davis também têm enchido os bolsos à conta do merchandising pelo qual dão a cara. Apesar de não revelar valores, a estação HBO, também parceira nesta negócio, diz apenas que as receitas já chegam às centenas de milhões de euros.

Além disso, o fenómeno em que se tornou esta série tornou possível o lançamento de uma coleção de roupa desenhada e criada pela própria Sarah Jessica Parker, ela que se tornou num ícone de moda à conta da sua mais famosa personagem. A coleção Bitten foi criada em 2007 com a maioria dos preços baixos (nunca acima dos 14 euros por peça) e tem sido um sucesso.

A atriz lançou ainda dois perfumes, Lovely e Covet, com vendas acumuladas que já ultrapassam os 118 milhões de euros.

Também Samantha tentou capitalizar o sucesso da série e lançou dois livros sobre sexo, sendo ela a personagem com menos tabus na trama e a receção do público não tardou a fazer-se ouvir: “Sexual Intelligence” e “Satisfaction” venderam um total combinado de 400 mil exemplares.

Mas há mais nesta febre de marketing de “Sexo e a Cidade”. Dispostos a rentabilizar a imagem que a série deu à cidade de Nova Iorque, várias empresas de turismo fazem percursos de autocarro para turistas com paragem nas ruas onde as personagens viviam e nos bares que frequentavam. Tudo isto a um preço de 30 euros por pessoa.

“O VERDADEIRO ‘PRODUCT PLACEMENT’ COMEÇOU AQUI. O GUARDA-ROUPA É TÃO IMPORTANTE COMO O ARGUMENTO”, DIZ AUTORA DE A PIPOCA MAIS DOCE

Produto global de sucesso, os números parecem não ser uma preocupação em “Sexo e a Cidade”. As quatro atrizes da série eram, durante os anos que durou, das mais bem pagas em televisão. Senão vejamos: segundo alguns órgãos de imprensa revelaram no início da quinta (e penúltima) temporada, em 2002, Kim Cattrall, Cynthia Nixon e Kristin Davis recebiam 250 mil euros, cada uma, por episódio. Sarah Jessica Parker, que também já se tinha tornado produtora executiva da série, recebia mais por ser a estrela principal: dois milhões de euros por episódio.

Mas desengane-se quem acha que o negócio de “Sexo e a Cidade” acalmou com o final da série e depois dos dois filmes no cinema. Pelo contrário, está bem viva. Segundo
um estudo publicado há cinco anos pelo jornal “Daily Mail”, o apartamento de
Carrie Broadshaw na série é aquele que mais pessoas tentam copiar no Reino Unido, à frente das habitações de personagens de “Mad Men” ou “Friends”. Os britânicos elegeram a casa de Sarah Jessica Parker na trama como a “melhor e mais inspiracional”, chegando algumas pessoas a gastar 620 mil euros para decorar as suas casas conforme a de Carrie.

OS DELFINS QUE SE SEGUIRAM

Com o caminho já desbravado para o papel de mulheres fortes na ficção, não tardaram a surgir séries com clara inspiração em “Sexo e a Cidade”. Assim que Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda saem de cena, em 2004, chegam Susan, Bree, Gabrielle e Lynette. “Donas de Casa Desesperadas” foi um projeto de sucesso que durou oito anos e que conquistou milhões em frente ao ecrã, contando a história de um grupo de amigas a viver nos subúrbios. Eva Longoria, Teri Hatcher, Marcia Cross e Felicity Huffman eram as estrelas de serviço.

“Gossip Girl”, que para além de ser muito focado nos enredos amorosos e na paixão pela moda, tem até a personagem principal como narradora, tal como já acontecia com Bradshaw. A série, exibida entre 2007 e 2012, elevou à escala global nomes como Blake Lively e Leighton Meeste.

Há seis anos, “Girls” deu que falar, roubando elogios da crítica e ganhando prémios de TV. A HBO voltou a apostar num formato que muitos consideram ser um “Sexo e a Cidade” mais alternativo e jovem. Lena Dunham, Allison Williams, Jemima Kirke e Zosia Mamet são as protagonistas.

SARAH JESSICA PARKER DIZ QUE SUCESSO DA SÉRIE ABRIU CAMINHO A “DONAS DE CASA DESESPERADAS”, “GOSSIP GIRL” E “GIRLS”

Mas a série que mais foi “beber” diretamente às influências do fenómeno criado por Candace Bushnell é “The Carrie Diaries”, a prequela que mostra a adolescência da personagem principal de “Sexo e a Cidade” e que se estreou há cinco anos no canal norte-americano CW. A série, com duas temporadas encomendadas pela estação, foi protagonizada por AnnaSophia Robb.

Sarah Jessica Parker não tem dúvidas quanto à influência da sua série nestes novos delfins da ficção. “O sucesso de ‘Sexo e a Cidade’ tornou estas séries possíveis. Caso contrário, tudo teria sido diferente. Todos elas são séries diferentes entre si, mas as semelhanças são visíveis nas questões da intimidade nas conversas e amizades entre mulheres”, explicou a atriz ao “Hollywood Reporter”.

Em 2006, a novela da TVI “Fala-me de Amor” foi encarada por alguns como o “Sexo e a Cidade” português, mas a autora, Maria João Mira, rejeita a comparação

Por cá, em 2006, dois anos depois de a série da HBO ter terminado, a novela da TVI
“Fala-me de Amor” foi encarada por alguns como um produto inspirado em “Sexo e a Cidade”, por ser urbana, sem tabus e centrada num grupo de quatro amigas, Sofia Alves, São José Correia, Sílvia Rizzo e Sandra Faleiro. A autora da novela, contudo, não vê “Fala-me de Amor” como uma cópia da série de Carrie Bradshaw.

“Não estranhei as comparações que foram feitas na altura, mas sinceramente, não as percebo. A novela tinha quatro mulheres nos papéis principais e imediatamente disseram que era o ‘Sexo e a Cidade’ à portuguesa. Mas não tinha nada a ver. A série norte-americana tinha quatro protagonistas solteiras, a minha novela só tinha uma, era a Sofia Alves, e duas das quatro personagens eram casadas. Mesmo nos assuntos, ‘Fala-me de Amor’ falava muito de problemas de alcoolismo e dependência da carreira. Mais facilmente aceitava comparações com ‘Donas de Casa Desesperadas’, onde se falava muito em problemas familiares, mas também ficava por aí”, diz Maria João Mira à N-TV.

A autora, contudo, elogia a série da HBO. “Teve o grande mérito de, pela primeira vez, retratar a vida de quatro mulheres independentes, foi inovadora. Daí o sucesso todo que teve. E, claro, era bem escrita. Eu tinha a minha personagem preferida, a mais parecida comigo mas prefiro não contar qual era”, ri-se a argumentista da TVI.

TEXTO: Nuno Cardoso

Artigo originalmente publicado na edição impressa da “Notícias TV” de 7 de junho de 2013.

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