Carlos do Carmo: A ternura dos 80 anos vista pelos amigos

Lisboa, 11/08/2017 - Concerto de Carlos do Carmo no Festival Sol da Caparica, na Costa da Caparica (Filipa Bernardo/ Global Imagens)

O fadista celebra hoje 80 anos. Família e amigos mais próximos destacam a “generosidade” e a “lealdade” e contam episódios inéditos. Carlos do Carmo passou os últimos dias num domicílio hospitalar.

A expetativa era muita, mas Carlos do Carmo acabou por não comparecer à apresentação do filme homónimo, de Ivan Dias, exibido ontem no auditório do Museu do Fado, em Lisboa. Depois de ter dado há um mês o último espetáculo ao vivo, no Coliseu dos Recreios, o artista foi traído pela saúde e esteve a recuperar num domicílio hospitalar. Nada que esmoreça a família e os amigos de casa de celebrar oito décadas de vida do cantor, que tem no seu círculo de amizades nomes como Pilar del Rio, Paulo de Carvalho e Rui Vieira Néry.

“Carlos do Carmo, referência sentimental da minha vida, fez-se-me presente em Évora, num início de ano que, digo-o já, continua a habitar a minha casa e a minha pessoa. O portento ocorreu numa loja de discos – então existiam – e a sua voz – a voz – soava cantando um poema de José Saramago ‘Aprendamos o Rito’”, recorda, emocionada, Pilar del Rio. “Mais tarde, apareceu de corpo inteiro. Em minha casa negou-se a descascar batatas, ou não se negou, simplesmente não sabia fritar um ovo, por isso o expulsei da cozinha reduzindo-o a um humano de sala e copa. Partilhámos, apesar dessa decepção, viagens, pátrias, festas de anos, conversas, amigos e frustrações: um dia quis brilhar junto de Cunhal e Saramago abrindo vinhos da colheita do ano da Revolução e todos estavam estragados”, lembra a jornalista e escritora ao N-TV. “O jantar, no entanto, foi óptimo e as confidências melhor que melhores, ou seja, a acidez do vinho não nos frustrou demasiado, sobretudo porque havia outros vinhos do glorioso presente”.

Pilar del Rio acrescenta que os dois se vão “encontrando pela vida”. “Ele é um rapaz alto e bem parecido com quem entro orgulhosa numa reunião política, social ou literária. Eu sou para ele uma sevilhana que lhe permite piropos, ainda que sejam mentira. As nossas cumplicidades passam por atrevimentos vários. Com Carlos do Carmo é fácil ser feliz. Amá-lo é um dom que recebi do destino e que partilho com os que vêm comigo. Ouve-se a bendita voz de Carlos do Carmo e fecho os olhos. Sabemos tudo”, conclui a mulher de José Saramago.

Rui Vieira Nery, musicólogo e historiador do Fado, não esquece a gratidão. “Foi em grande parte ele que me convenceu a trabalhar em profundidade sobre o Fado e que de algum modo foi o meu ‘fiador’ perante a comunidade fadista que desconfiava de um musicólogo vindo das áreas remotas das Músicas Barrocas. E pelo caminho foi-me sempre guiando e ensinando de forma discreta mas com uma autoridade natural, ora elogiando o meu trabalho com palavras de encorajamento amigo, ora corrigindo nele com desassombro o que lhe parecia errado”, refere ao nosso jornal.

Paulo de Carvalho assume-se como um companheiro de muitas lutas. “O Carlos é uma pessoa leal ao seu amigo. Construiu uma vida que não é só feita de coisas boas, sabe que houve muitas complicações para resolver”, admite o cantor. “Amigos não são aqueles para estarem juntos de nós todos os dias, são amigos e pronto!”, remata o intérprete.

Gil do Carmo, um dos três filhos do músico, é um herdeiro orgulhoso. “É um paizão! É um homem generoso, que consegue conciliar o ego de ser artista com a importância e a obrigação social de retribuir a partir de um palco”, adianta ao N-TV. ”Teve a particularidade de saber a altura em que devia retirar-se e sai em grande. Tem uma cabeça de miúdo numa carcaça de 80 patacas!”.

Ivan Dias é o autor do filme “Carlos do Carmo, Um Homem no Mundo”. “Deu-me carta branca e disse-me: ‘o menino conta aquilo que quiser e como quiser’. No último concerto de carreira do Carlos no Coliseu há menos de um mês ele falou em palco do ‘miúdo’ que sonhou com ele o filme do Saura e fez outro sobre a sua vida, sem nunca me nomear. O filme termina com a renovação dos votos do casamento entre ele e a Judite em Las Vegas numa capela em que o padre era ‘um’ Elvis Presley. Acho que é revelador da forma descontraída por onde levamos o filme é também da desconstrução e dessacralização que fizemos de uma figura que aos olhos do grande público sempre apareceu formal embora próximo. Acho que ele gostou mesmo de se ver ali na tela desconstruído!”, congratula-se Ivan Dias.