Paulo Betti: “Como indivíduo tenho de abdicar do conforto da isenção”

Paulo Betti
Fotografia: Tiago Caramujo/SIC

O intérprete brasileiro está em Portugal para apresentar “Autobiografia Autorizada”, um monólogo criado a partir de registos da sua juventude. Paulo Betti lembra os tempos de menino e, agora, a responsabilidade de intervir nas eleições presidenciais do Brasil.

Paulo Betti aproxima-se da reportagem da N-TV num hotel em Belém, junto ao rio Tejo, com um sorriso largo e pronto para largos minutos de conversa. Mas, primeiro, pede uns instantes: é que, aos 70 anos, continua a mover a sua influência como um dos artistas mais respeitados do Brasil em prol da campanha de Lula da Silva que vai às urnas com Jair Bolsonaro nas presidenciais.

Havemos de chegar à política – Paulo Betti conhece Lula desde o final dos anos 70 -, mas, primeiro, o intérprete aborda a sua “Autobiografia Autorizada”, um monólogo com registos da sua infância e adolescência, que recorda a vida dos seus pais e avós: em resumo, o trajeto do ator que começou num cenário pobre e humilde do Brasil profundo até ao sucesso na cidade grande, onde se notabilizou no Teatro, Cinema e Televisão – e em novelas, como “Tieta”, “Pedra Sobre Pedra” ou “A Indomada”.

A peça sofreu uma interrupção por causa da Covid-19 e foi retomada no Brasil e em Portugal, com exibições na Madeira, Lamego, seguindo-se Algarve (dia 1, Centro Cultural de Lagos), Fafe (dia 4, Teatro-Cinema) e Vila Franca de Xira (dia 5, Pavilhão Ateneu Vilafranquense).

“Fui recebido com muito carinho, porque o público português gosta de histórias que são parecidas com a dele: de gente pobre e humilde, que emigrou, então os espetadores identificam-se muito”, começa por dizer. “Interrompi a digressão por causa da pandemia, tive de me adaptar ao online e agora fiz quatro apresentações na Madeira”, acrescenta Paulo Betti.

Em “Autobiografia Autorizada” há “memórias de infância e adolescência com 50 por cento de humor, 25 de poesia e outros 25 de drama. Mas, na maior parte do tempo, sinto o público a rir”, garante.

O ator define-se, no passado, como um “menino e jovem muito responsável”, “sério e organizado”. “Não podia falhar, era o responsável pelos meus pais, por ter nascido quando eles já eram velhos. Por sentir as circunstâncias económicas da minha família não podia causar problemas e tinha de ser a solução”.

Paulo Betti garante ter a sorte de ter crescido num “quilombo” (sociedades escondidas de escravos) “onde 90 por cento eram negros”. “Havia uma família de portugueses, a nossa era de italianos e outra de japoneses”. “Estou a falar de quatro ruas de terra, um local mágico, com predominância para a cultura africana”.

“Isso deu-me um olhar multirracial, atento para essa questão. Depois tive a sorte de ter frequentado boas escolas públicas, que me proporcionaram uma estrutura para poder ir para a universidade, o que abriu a possibilidade de ter uma carreira, que não existia se não fosse o ensino público em Sorocaba nos anos 50”, lembra.

Nesta história de “superação”, como admite – embora “não fosse essa a intenção” – o ator pretende “homenagear os antepassados, até por uma questão católica”. “Encanta-me, na minha infância, a mistura da religião africana com a da Igreja Católica. No Brasil a mistura chama-se Umbanda. Esta religião apela à memória dos nossos avós e sempre tive interesse pelos velhos: na TV eu estava sempre a observar um ator ou uma atriz mais antiga”.

Na memória do intérprete há memórias ainda bem vivas, uma delas muito especial, por ser marcante. “O meu avô era emigrante italiano e trabalhava para um fazendeiro negro. Isto era uma situação excecional. Como é que aquele homem teve terras? Qual era o meu ponto de vista de menino ao ver aquela casa grande a partir da sanzala? Vendo o negro numa posição de superioridade? Achei que isto merecia ser contado e então fiz a minha biografia para homenagear os meus pais”.

Ativista pela campanha de Lula da Silva, Paulo Betti espera ver o Brasil a mudar. “Há uma perseguição à Cultura, nesta eleição é a barbárie contra a civilização. A Democracia foi sendo corroída ao longo destes quatro anos”. E vai mais longe: “A Democracia, às vezes, não morre por um golpe, mas por muitos pequenos golpes. O Governo de Bolsonaro tirou, por exemplo, toda a fiscalização da floresta amazónica”.

Daí ter a sua posição política bem definida. “Para evitar esta situação absurda espero que vença o bom senso, o livro e não a arma e o amor. Acompanho Lula da Silva desde 1979 e nunca tive nenhum cargo público ou recebi um centavo para fazer campanha política. Apenas faço isso porque acho necessário posicionar-me e sofrer as consequências”.

E faz o paralelismo com a sua profissão. “Já que interpretamos diversas personagens temos o direito de nos expressar, finalmente, como indivíduos. Tenho de abdicar do conforto da isenção. É mais confortável ser isento, estar de bem com todos, a minha profissão seria neutra. Mas eu não sou neutro!” remata Paulo Betti.